Texto: Nuno Vicente Encenação: Nuno Vicente Estreia: 28-06-2013 | Palácio Nacional de Sintra
E se houvesse um rei que fosse, ao mesmo tempo, "fraco de espírito e corpo" mas também "extravagante"? Um rei que fosse "impotente" para dar a Portugal um sucessor, mas também "devasso" e amante das más companhias? Um rei que suscitasse a desconfiança por ser "incapaz de governar", mas também a piedade por ser "pobre e desgraçado"?
D. Afonso VI é esse rei. D. Afonso VI é o alvo desta conspiração. Personagem trágica, qual "Rei Lear" à portuguesa, D. Afonso VI foi preterido pela mãe, traído pela esposa e levado à barra do tribunal pelo irmão. Neste Palácio Nacional de Sintra viveu D. Afonso VI os últimos anos da sua vida. Este mesmo Palácio para o qual convidamos agora o público: para que viva o fausto da Corte e se delicie com os seus divertimentos teatrais e musicais antes de, já quase na última cena, a conspiração palaciana dar lugar ao infame Processo do Rei..
Depois de, em 2011, ter levado à cena Uma Noite no Palácio, a Utopia Teatro, em co-produção com a Associação Danças com História e com a Parques de Sintra - Monte de Lua, regressa em 2013 ao magnífico cenário do Palácio Nacional de Sintra, desta feita com um espectáculo que explora as espectaculares singularidades da vida e morte de D. Afonso VI, que os visitantes do Palácio conhecem pela trágica e anedótica circunstância de ali ter permanecido, em cativeiro, durante nove anos - o quarto onde permaneceu encerrado exibe, no chão, as marcas dos seus circulares e infindáveis passos.
Conspiração no Palácio resulta de dois anos de rigorosa investigação histórica e dramatúrgica: a estrutura dramática do texto de Nuno Vicente assenta nas datas mais marcantes da vida de D. Afonso VI e para a construção dos diálogos o autor recorreu, sempre que possível, ao aproveitamento directo dos documentos históricos disponíveis, em particular no que toca àquele que ficou conhecido como o Processo do Rei. Mas nem só de drama ou tragédia se faz Conspiração no Palácio: a música e as danças da época marcam presença, bem como o teatro, pois a trama conspirativa é intercalada pela divertida farsa "O FIdalgo Aprendiz", texto contemporâneo de D. Francisco Manuel de Melo, que uma trupe de saltimbancos apresenta perante a Corte. Nesta época sombria com tantos paralelos com a época de D. Afonso VI, este empreendimento artístico só pode ambicionar um certo retorno: haja público. Assim, a todos convidamos para que assistam a este espectáculo, para que participem desta experiência única e diversificada. Só a afluência do público poderá certificar que ainda é possível sonhar o Futuro, respeitando a memória do nosso Património. PORQUÊ D. AFONSO VI?
Dificilmente se encontra na História de Portugal – com excepção dos trágicos amores de D. Pedro e Inês de Castro – uma figura real cuja vida fosse mais insólita e capaz de desencadear os mais extremados sentimentos, não só aos seus lusos contemporâneos do século XVII mas atraindo também a atenção pública de tantas cortes na Europa, dado o carácter trágico e absurdo de uma série de episódios relacionando D. Afonso VI com a novela da Nação de então. Na nossa literatura despertou inflamadas pesquisas dos mais ilustres autores – e no entanto ainda tão aquém ficam do legado desta figura. A sua história, plena de Fados, tanto então como hoje, é capaz de assombrar qualquer um.
A realidade supera a ficção. Meta-teatro. Colocar em cena um rei ausente. Uma Nação, uma Corte, um Palácio onde todos falam, em maior ou menor surdina, do Rei. Onde todos parecem mover-se em sucessivas contradições, alternando posições e interesses ora a favor ora contra a memória desse rei. Melhor que ninguém conseguiu Shakespeare transpor para o palco estes movimentos. Mas o nosso D. Afonso VI não é rei comum. Oliveira Martins não foi excessivo ao afirmar, convicto, que D. Afonso VI é o nosso "Rei Lear". Para muitos, o primeiro e único contacto com esta figura histórica limita-se ao breve calafrio de espreitar o chão de ladrilhos, desgastado num círculo, do estreito quarto destinado a D. Afonso VI num cativeiro de 9 anos no Paço de Sintra. Adensa-se o mistério se acrescentarmos ter sido o seu próprio irmão mais novo, D. Pedro, a decidir o seu cativeiro. Novo espanto se segue, desenrolando o novelo: D. Pedro força o irmão a abdicar da Coroa e desterra-o, ao engano, no castelo de uma ilha minúscula do Oceano. Quatro anos na Ilha Terceira antes de ser levado ao seu último pouso de nove anos, ao Paço de Sintra, onde vem a falecer, aos quarenta anos, em 1683. Não só nestas linhas de lutas fratricidas comuns nas cortes europeias de então se consumiam as atenções. Foquemos o lado matrimonial com esperanças de encontrar maior estabilidade. Em vão. Qualquer matrimónio entre pares reais era jogo primeiro de instável equilíbrio de interesses, alianças estratégicas entre nações. Portugal era joguete entre influências castelhanas, francesas e inglesas. Decidia-se então o casamento com Maria Francisca de Sabóia, a que as más línguas se referiam como a espia de França. Mas também aqui tudo se precipita em escândalo. Num curto arco temporal de um ano e meio entre Agosto de 1666 – ano do grande incêndio de Londres, a que o The Globe de Shakespeare apenas escapou porque já havia antes sido demolido, ano recheado de previsões apocalípticas de fim-de-mundo – e o desencadear do tristemente célebre "Processo do Rei" em finais de 1667, Maria Francisca de Sabóia casa com D. Afonso VI, conspira contra ele, envolve-se com o infante D. Pedro, foge do palácio para o convento, declara nulo o casamento, e pouco tempo depois casa com D. Pedro, irmão do seu ex-marido desterrado. Escancarada a porta do matrimónio nos tribunais de opinião de toda a Europa, ainda mais o escabroso, o macabro se eleva da curiosidade alheia. Alega-se a não consumação dos laços matrimoniais – leia-se "incapacidade de procriar" – como justificação potenciada pelo futuro da independência da nação portuguesa depender dessa descendência real. Em simultâneo apregoa-se a leviandade do rei por frequentar casas de má fama e de provocar distúrbios tanto nos paços reais como em saídas nocturnas, semi-encoberto, nas ruas de Lisboa. Mas ainda há mais para Shakespeare poder lamentar não ter conhecido figura assim. D. Afonso VI nasceu em 1643 e não foi filho primeiro de D. João IV, o Restaurador – e como tal não foi educado para ser rei. À nascença, contudo, numerosos foram os bons augúrios logo estilhaçados, três anos depois, quando um "estranho mal" acomete o jovem provocando-lhe "lesões" para toda a vida. Aos dez anos perde os dois irmãos mais velhos, e três anos depois o seu próprio pai. A consanguinidade genética era a "maldição" de muitas casas reais de então. Derivava em "Melancolia" – o mal de vivre da época – ou em loucura. D. Afonso VI não escapou a tão pesadas sombras a ponto de parecer irónico que tão desventurada figura tivesse por cognome o "Vitorioso". A biografia de D. Afonso VI está amplamente documentada e comentada ao longo dos séculos por figuras incontornáveis da cultura portuguesa, desde o Padre António Vieira (contemporâneo de Afonso VI e parte da intriga palaciana) a Camilo Castelo Branco, de Oliveira Martins a D. João da Câmara, passando por João Medina. Contudo, no campo das artes cénicas – ao contrário do que seria de supor – semelhante figura "trágica" não suscitou na comunidade artística a mesma diversidade exploratória comparável à Tragédia de D. Pedro e Inês de Castro. Digno de nota só se encontra registo da apresentação com muito sucesso do "D. Afonso VI" de D. João da Câmara, em 1890 – ano do tristemente célebre Ultimato Britânico. Regressamos então, depois desta barroca e melancólica derivação pelo universo da Nação Portuguesa no século XVII, ao propósito primeiro de considerar a figura de D. Afonso VI como objecto simbólico de construção artística no campo das artes cénicas. A Utopia Teatro sempre privilegiou o contacto próximo entre o património material, físico, de tantos de espaços de Sintra e o património imaterial, as histórias e lendas que fazem desses espaços uma Paisagem Cultutral da Humanidade. O Palácio Nacional de Sintra consegue, como poucos, sublimar e cristalizar uma multiplicidade de leituras e desafios que encerram em si o melhor de Sintra e de um certo Portugal Universal. "Conspiração no Palácio" não é o primeiro projecto desenvolvido pela Utopia Teatro em colaboração com o Palácio Nacional de Sintra, mas sim o fruto ambicioso de anos de pesquisa e reflexão em que se foram apurando diferentes abordagens e leituras de tão inesgotável monumento. Ambicioso é este projecto porque se propõe "ressuscitar" antigos debates e agitar, de novo, as consciências com inesperados pontos de contacto entre o século XVII e o século XXI. Ambicioso porque não pretende transformar o Palácio Nacional de Sintra numa sala de espectáculos, mas sim possibilitar a experiência de questionarmos essa figura histórica como se olhássemos num espelho o nosso próprio rosto de nação – e no próprio espaço que D. Afonso VI experimentou. Em nove anos, como prisioneiro. Dar a possibilidade ao público de testemunhar o próprio espaço físico onde morreu e foi velado o rei que todos quiseram silenciado. Conceder proximidade e devolver a emotividade à memória histórica. Sem deturpar factos históricos. Escrupuloso respeito que não impede a emoção de fluir. Assim a construção da estrutura dramática obedece a momentos concretos que marcam o desenrolar da acção: nascimento (1643) e morte (1683). Chegada ao cativeiro de Sintra (1674) e conspiração que culmina com o Processo do Rei (1667). Contudo, é, em simultâneo, projecto humilde no sentido que só pretende ser um primeiro estudo de dramaturgia para a abordagem teatral à figura de D. Afonso VI, associando-a ao espaço físico do Palácio e articulando um diálogo entre os dois únicos autores que abordaram o tema numa perspectiva teatral: D. João da Câmara e Oliveira Martins. Em primeira instância a sua estrutura dramática poderá ser considerada, dentro dos cânones teatrais, como esboço de "Drama Histórico". E ainda Meta-Teatro, porque a sua metodologia assenta:
A estrutura dramática assenta nas datas mais marcantes da vida de D. Afonso VI. Contudo, apesar de todas as personagens se referirem ao monarca, este é o grande ausente do espectáculo. A sua ausência vai-se construindo cada vez mais palpável através das outras personagens, que alternam entre figuras históricas da nobreza e figuras anónimas da serventia popular saloia do palácio. A sua sombra tudo enforma. Nuno Vicente FICHA TÉCNICA E ARTÍSTICA
0 Comments
Leave a Reply. |
PortfolioConheça os espectáculos realizados pela Utopia Teatro Data de estreia
November 2014
|